6 de julho de 2025

AURORA

 Nei Duclós 


Por ter escrito tudo

Amargo esta noite o abandono do poema

Cruzei a linha de chegada

E revisito o já dito com reservas


Exagerei na dose da vocação precoce

Que na tardia idade revelou as sobras

Do verso de improviso, do texto sem retoque


Muitos não concordam e selecionam estrofes

Que cometi jovem no calor da hora


Deveria, no capricho, me aprofundar no ofício 

Mas tudo veio fácil como um vento forte


Agora não sei o que dizer, em plena aurora

Talvez o sol, gigantesco sábio 

Queime o remorso e revele a obra

Tudo o que fiz com sangue nas mãos e água nos olhos

Pobre coração ainda intacto


Nei Duclós

NOBREZA

 Nei Duclós 


Meu luxo é sobreviver 

Chegar bem no fim do mês 

Para então recomeçar 

Sustentado pelo ar 

Muitas contas para pagar 

Eu dependo de você 


Sem força de levantar

Rima pobre popular

Ainda tudo por fazer

O livro parei de ler

Amor que é bom só virtual

Um vizinho põe o som


Meu luxo é teu respirar 

Janelas de par em par

Futuro ficou para trás 

Eu não tenho mais lugar

O país caiu de vez

Mas a nobreza é ter voz

Canto para não morrer


Nei Duclós

4 de julho de 2025

SOMBRA

 Nei Duclós 


Este que você vê não sou mais eu

O que fui sempre serei

Guarde o que o tempo não comeu

Esqueça no que me transformei

Essa sombra de mim, que já fui rei


Prefiro preservar dias de amor

Quando fui teu


Nei Duclós

UMA FLOR

 Nei Duclós 


Que haja calor no inverno

para suportarmos o ar polar


E vento sul antes do sufoco do verão


E o friozinho do outono adoce os frutos da estação


E a primavera traga teu perfume

Feminino amor


Nei Duclós

CONJUGAÇÃO

 Nei Duclós 


Não adianta querer se você não é 

Não adianta ser se você não quer 

Não adianta ver se não tiver fé 

Não adianta ter se nada houver

Só tem que nadar quando não dá pé 

Quando for rezar pense no amanhã 

Cada verso faz o teu navegar 

Caia se essa força não te socorrer 

Volte a levantar todo amanhecer


Nei Duclós

3 de julho de 2025

PERDIDA

 Nei Duclós 


Eu não preciso de tempo 

Eu não preciso de amor

Podem dizer que sou lento

Não mais importa o que sou


A não ser que marques encontro

Um café ou apartamento 

Que me apresse e nunca te perca

Desta vez, perdida para sempre


Nei Duclós

1 de julho de 2025

ABERTA

 Nei Duclós 


Estrelas da minha fantasia

Fazem rodízio no paraíso

onde vivo

Dispondo as peças do xadrez de sonhos 

Sou o peão e o rei é o tempo

Que escorre pelos dedos longos


Poderia tocar piano minha flor aberta

Debaixo das cobertas

Cabem todas as teclas

Fique perto


Nei Duclós

28 de junho de 2025

QUATRO ESTAÇÕES

 Nei Duclós 


No inverno ficamos mais velhos

A idade não avança na primavera 

Depois o verão queima todas as células

Mas chega o outono e você se recupera


Não que remoce

Ou se acostume com a perda 

Mas o tempo repõe o que mais queres

Tua fome de amor por uma incerta princesa


Nei Duclós

CORRERIA

 Nei Duclós 


Admiro quem se movimenta

Anda corre pula dança 

Eu também estive no front

Sem tanta intensidade, só para o gasto

Hoje observo os contemporâneos 


No fundo, passei a maior parte do tempo 

Sem ter o que fazer com meu corpo

Sonhei, mas isso todos são capazes

Fiquei, quando me diziam vamos


Ao me verem deitado repassavam encargos

Que eu cumpria a caro custo

O que me empolgava eram os estudos 

E os versos na máquina Smith Corona


A literatura foi minha maratona


Nei Duclós

27 de junho de 2025

JUNTOS

 Nei Duclós 


Às vezes falo sozinho

Rompo o silêncio, por certo

  É quando digo a verdade

E não quero que contestem


Já me basta quem tece

Armadilhas da conversa 

Prefiro ser o que penso 

E que ninguém esclarece


Assim mesmo tem assunto

Que eu não consigo consenso

Peço a palavra insurgente

E brigo por um aparte


Já quiseram me internar

Mas fácil me recomponho

 É só uma trova, paisano

Segue a roda e estamos juntos 


Nei Duclós

26 de junho de 2025

MADEIRA

 Nei Duclós 


Falo na madrugada para o nada

Ruas vazias, janelas fechadas

Inútil boemia de bêbada sorte

Sou o último poeta desse pobre porre


Falo lesado pelo destino incerto

Quando veio minha vez tudo estava morto

Quis saber do mistério mas ele também se cala


Resta a ilusão de que uma hora amanhece

Aí quem sabe a vida acontece

E desperta o que tinha de múltiplas vozes

Enterradas no peito de madeira nobre


Nei Duclós

25 de junho de 2025

PERDA

 Nei Duclós 


Já não te enxergo mais, corpo do avesso

De tão exposta perdeste a forma 

Eras cascata em tarde no outono

Hoje és a flor escondida no ermo


Aperto os olhos e nada vejo

Apenas ouço teu passo de seda

Assediando o poema, que cego te perde


Nei Duclós

24 de junho de 2025

INVERNO

 Nei Duclós 


Tua lembrança aquece o quarto frio

Na solidão o inverno é o coração 

Sem esperança de um dia retornar

À dança de salão onde fui te namorar


A memória é uma estação de esqui  

Lá eu deslizo para bem longe de ti

Aceno com meu gorro de lã gris

Mas a neve te leva para não me ver


Atiço a brasa que está quase por morrer

A coberta gasta não consegue segurar

O telefone tinha o hábito de tocar 

Mas os teus dedos escorregam para o mar


Nei Duclós

22 de junho de 2025

VALOR

 Nei Duclós 


Toda obra joguei na calçada 

O tempo devorou seu valor

Versos sem apoio

Poemas furta cor

E tu distante porque viste

No primeiro instante 

O que eu exibia fingindo amor


Nei Duclós

20 de junho de 2025

DEMORA

 Nei Duclós 


Fiquei preocupado hoje

Custou a amanhecer

Pensei: e se a noite decidir ficar?

Não a noite de estrelas e luar

Ou a nublada com sua dose invernal

Mas a noite que se assenhora da manhã

E demora em treva temporã?


Essa escuridão sem a origem crepuscular

Invasão que devora o dia ainda no ventre

Assassina da promessa da claridade urgente

Estação do amor conosco sempre 


Temos fome de café com pão 

Que é o sol, nossa ração diária


Não inventa, poesia, de nos assustar 

Não tenho saúde para suportar a dor

De esperar a alvorada antes de morrer


Nei Duclós

17 de junho de 2025

OCULTA

 Nei Duclós 


O grande amor é um relâmpago 

Ilumina por um segundo

Depois te joga no escuro 


Não tem vocação de ficar junto

Não vive para repetir o escândalo

De aparecer de repente com estrago


Sua meta é  a fuga

Não se responsabiliza pelo que abandona

Acha muito a sensação que dá de graça 

Por isso é escassa, se vinga

De sua natureza bruta


Volta amor, dirás sozinho

Enquanto ela ri oculta em tua fantasia 


Nei Duclós

CREPÚSCULO

 Nei Duclós 


Já escrevi sobre tudo 

Praia deserta, calça de veludo 

Amor partido, perda de rumo


Sobrevivi, poeta de água doce 

Veterano precoce

Porre de aventura


Sei que perdi, queda no abismo

Mas vitória é para os fracos, gozo iludido

Vale a lucidez, crepúsculo de vidro


Nei Duclós

10 de junho de 2025

VIDRO

 Nei Duclós 


Não lembro deste corpo de vidro

Que quebra ao primeiro vento

Este poema partido

Em trens de longo trajeto


Não lembro de ter esquecido

O momento mais ferido

Herança no eterno presente

A pulsar como um espinho


Sou o que fica para sempre 

Pastor de estranho rebanho

Na montanha bebo a água

Que forma o esquecimento 


Nei Duclós

2 de junho de 2025

RETORNO

 Nei Duclós 


Não tenho mais o retorno

Não perguntam, nem respondem

Continuam ocupados

Sou tratado como estranho

Celebram, enquanto me excluem

Desse bizarro mercado


Já fiz parte dessa obra

Quando me dava importância

Agora chegou minha vez

De ser cachorro sarnento


Cumprimento para o vazio

Nem mesmo o vento me acena 

E se acaso apareço 

Está vivo, se surpreendem

Num alvoroço de perdas


Nunca fui muito chegado

Recolhido ao próprio canto

Fui alguém quando chamado

Mas nunca fiz muito esforço


Por isso passo ao largo

Fingindo que não me importo

Mas isso dói em silêncio 

De um veterano da guerra


Hoje quem bate na porta

São as lembranças de um tempo

Que não me sai da memória 

Vivi porque Deus permite

Venci porque fui História

Não mereço ter a sorte

Do bem querer que acompanha

Quem é antigo e apanha

Da vida que não dá trégua 


Nei Duclós

1 de junho de 2025

DUAS ALMAS

 Nei Duclós 


Procuras por poesia 

Por isso evitas meus insultos

Mesmo que não busques, ao ficar decides

compreender o verso elaborado bruto

Que gera ametista, tua leitura


Assim vamos, duas almas perdidas

Uma que verte areia na paisagem dos sentidos

Outra que extrai água de camadas profundas

Tua epifania


 Nei Duclós

28 de maio de 2025

DIGO

 Nei Duclós 


Falo por falar

Escrevo para valer


Digo por fazer

de conta do saber 


Só lendo é que eu sei 

Segredos de ninguém


O que você não vê 

É a letra que escondi


Vejo a mão de Deus 

No livro que lancei


Um dia repeti

O que não escutei


Depois me arrependi

No mar onde sou rei


Nei Duclós

27 de maio de 2025

DESCOBERTA

Nei Duclós 


A vida é real, concreta. Mas quando chega a terceira idade você descobre que tudo é uma ilusão. Você enterra a biografia, as amizades, pessoas da família e vê envelhecer quem existia como presença permanente e parâmetro do teu imaginário. Os corpos despencam e a mente acumula equívocos.


Só tu, meu amor, estrela guia, flor da lua, serena e divina paira no ar do apocalipse. Seja você quem for que deita em meu sonho como orvalho na pétala amanhecida.


Nei Duclós

25 de maio de 2025

ALMA GÊMEA

 Nei Duclós 


A verdadeira nobreza é o sentimento 

Não o dinheiro

Que não compra linhagem nem beleza


Sem amor somos apenas carne 

Ossos e nervos

Animados por um mistério, a vida

Que na essência vai atrás do que sente

Alguém da família, ou amante, ou amiga


Por isso existem príncipes e princesas

Talvez na monarquia mas nem sempre

Normalmente descobertos por acaso

Nas ruas de desespero e desconfiança 


Venha, nobre coração 

Alma gêmea 

Nosso brasão são momentos de ternura

Que brilham no sol da tarde e no luar 


Nei Duclós

DECISÃO

 Nei Duclós 


Não cumpri a promessa

Recuei na conversa

Rasguei o contrato

Não mantive a palavra

Teimei no meu erro

Não fui ao concerto


Falhei todo o tempo

Saí pelos fundos


Não vou quando é certo 

Fiquei no chamado

Fugi nessa hora

Corri mesmo perto


Avisei, mas não viram

Escolhi mar aberto 


Nei Duclós

22 de maio de 2025

ESTÁDIO

 Nei Duclós 


Agora me perdi, flor do cerrado

Monte que no pampa submerge

Em mares de neblina mal chega o inverno

Gruta onde esqueci o som de algum milagre


Onde estarei se o mar ainda é incriado?


Caí no chão que a lama tece

Entre o troar da tempestade

Acorreu-me o sonho, escudeiro pobre

Levado de arrasto por uma estrofe


Tudo é o verbo que inventou e sofre

O mundo que nunca me socorre

Aguardo o desfecho, jogo de bola

No estádio vazio e o coração mais forte


Nei Duclós

21 de maio de 2025

TRUQUES

 Nei Duclós 


O desejo era secreto

Pois teu corpo estava oculto

Mesmo tirando a roupa

Não exibias teu mundo

Palavras como recôndita

Íntima, úmida, crua

Guardavam o prazer imenso

Que não confessa seu nome


Não que estivesses nua

Sob a capa dos sentidos

Que espicaçavam os brutos

Mas sim porque não diziam

O verbo em libras dos mudos


Foi assim que vi primeiro

Os segredos femininos

Antes que todos notassem

Teu andar sobre a laguna

Caminhas como nos trilhos

Trafega o temor 

do escuro


Vestido, echarpe, biquíni

Tudo nos leva à tortura

Depois ao lado da cama

Existes só de mentira

Porque a musa na armadilha

Usa seus subterfúgios


Sou suspeito, vivo à toa

Nos truques do teu destino 


Nei Duclós

19 de maio de 2025

MESMA MOEDA

 Nei Duclós 


Antes de eu nascer

O mundo não precisou de mim

Depois, muito menos

Continuará normal

Quando eu desaparecer 


Por isso esse beijo desnecessário que te dou

É a única prova de que a indiferença do mundo

É a sua principal vítima

Via de mão dupla

Ele ignora, eu retribuo


Nei Duclós

5 de maio de 2025

CADA UM

 Nei Duclós 


As almas são impermeáveis

Não reagem, apenas devolvem

As consciências estão fechadas

Portas da percepção com cadeado


Não adianta insistir, apresentar provas

Dentro do Outro ninguém tem acesso

Só se convencem se houver sintonia

Entre o que está dentro

Com o que vem de fora


O influencer e o formador de opinião 

São anedotas

Cada um é o seu supremo vórtice 

Topo do mundo, que na cadeia alimentar

A tudo devora


Nei Duclós

LÁGRIMA

 Nei Duclós 


Quem somos nós que choramos por nada?

E que todos riem como se fôssemos palhaços 

Escondemos o rosto para que só Deus veja

Esse sentimento que de nós transborda


Somos derretidos diante do milagre

Não choramos por lamentar a barbárie

Isso todos os sensíveis fazem

Somos diferentes, essa emoção que mata

Porque a vida não se explica nem com verso e prosa


É inútil escrever por isso tanta lágrima 

Choramos juntos, eu na noite alta

E tu, diurna, pranto de tua obra


Nei Duclós

3 de maio de 2025

ESPÍRITO

 Nei Duclós 


Não tenho fim nem começo 

A não ser um verso sem pé nem cabeça 

Que não foi convocado e não consegue dizer


Ele próprio é apenas um ser

Que veio de um lugar que só eu sei

E por isso não poderá conquistar o que for


Sou um espírito antigo do mar


Nei Duclós

OSZAR »